Cassilândia
Coluna Linguística - Quando a linguagem falha, mas o cérebro não
*Por Gabriel Pinheiro

A gente tende a achar que aprender a falar é como aprender a andar: basta ter um cérebro funcionando e um pouco de prática. Mas não é bem assim. Pesquisas com famílias e casos clínicos vêm mostrando que a linguagem tem suas próprias engrenagens no cérebro e que, quando elas falham, nenhum esforço ou inteligência geral dá conta do recado.
Um exemplo impressionante vem de uma família com três gerações afetadas por uma condição genética rara: algumas pessoas falam normalmente, enquanto outras, apesar de saudáveis e inteligentes, têm enorme dificuldade com coisas simples como colocar um verbo no ado. Não é preguiça, não é má vontade: é como se a noção de “gramática” nunca tivesse sido instalada. A fala sai, mas sai tropeçando, como frases quebradas, tempos verbais embaralhados, palavras fora de ordem.
Curiosamente, há o oposto disso também. Pessoas com atraso mental, como em casos da Síndrome de Williams, conseguem construir frases complexas e expressivas, mesmo tendo dificuldade com matemática, planejamento ou orientação espacial. Muitas vezes são incrivelmente sociáveis, com vocabulário afiado, entonação vibrante e histórias cheias de emoção. É um tapa na ideia de que linguagem depende apenas de “inteligência”. O cérebro, aparentemente, pode ser ruim em lógica, mas ótimo em contar causos.
O mais espantoso: se a criança não tiver contato com uma língua até mais ou menos os 12 anos, dificilmente vai conseguir aprendê-la plenamente depois. Foi o que aconteceu com Genie, uma menina americana que viveu isolada até os 13. Mesmo após anos de terapia e estímulo, sua fala nunca ou do nível de uma criança de dois anos e meio. Não por falta de esforço ou afeto, mas porque o sistema já tinha entrado em modo de hibernação.
Estudos com imigrantes que chegam tarde a outro país também confirmam isso. Quem aprende uma nova língua depois da adolescência, ainda que more anos no exterior, quase sempre carrega traços linguísticos que não somem: um verbo fora do lugar, uma ordem trocada, uma preposição esquisita. O mesmo acontece com crianças surdas que só têm o à Libras ou outra língua de sinais depois dos anos cruciais. Elas até se comunicam, mas a riqueza sintática, a fluência espontânea, isso fica prejudicado.
Tudo isso aponta para uma conclusão surpreendente: o cérebro vem equipado com um “modo linguagem” que se ativa numa janela crítica da infância. Depois disso, o sistema começa a se fechar. Como um forno que esfria, ou seja, falar não é só aprender, é florescer no tempo certo.
Como toda flor, a linguagem também precisa de luz, de solo fértil e de um clima certo. Um bebê exposto a palavras, gestos, melodias e afeto está mergulhado num banho de estímulo que aciona engrenagens invisíveis. Quando tudo isso falta — ou chega tarde —, não adianta despejar vocabulário depois. O tempo já ou. Não porque o cérebro tenha parado de aprender, mas porque aquela configuração específica, aquela porta da linguagem, já foi trancada por dentro.
É um lembrete de que a língua não é só um dom, mas uma urgência biológica que bate na porta da mente e espera ser atendida na hora certa.
*Gabriel Pinheiro é professor, psicopedagogo e mestrando em Linguística pela Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp